Alguns anos
atrás, este que vos fala exclusivamente tomava vinhos. Nós nunca imaginamos que
seria uma coisa boa para a saúde ou para o mundo a abstenção, salvo em algumas
situações muitíssimo especiais. E, desfrutando este tão efêmero prazer da
bebida, tomávamos apenas vinhos, nunca sem tomar extremo cuidado com a
excelente qualidade do líquido.
Os anos foram
se passando, e ficou claro que o vinho era, sobretudo, uma enorme afetação de
sofisticação. Não que o vinho não seja uma bebida sofisticada, mas ele tem o
poder quase sobrenatural de fazer quem quer que o beba parecer muito
sofisticado, de forma que as afetações quase transexuais como a percepção de
aromas de "pele de raposa" (distinguível apenas para caçadores
ingleses, imagino...), madeiras de lei (alguém aqui já comeu carvalho? Imagino
que a maioria nunca nemao menos viu
carvalho...), e os genéricos "floral" e "frutado" (coisas
que todos os "sommeliers" de botequim dizem quando não sabem como
analisar a bebida) se tornaram quase insuportáveis para este humilde narrador.
Foi então que
nós descobrimos o mundo encantado das cervejas, quase diametralmente oposto ao
dos vinhos.
Por quê tão
diferente? Não há "sommeliers" de cerveja?
É claro que
há. As cervejas também apresentam aromas diversificados, alguns bastante
exóticos. Mas a cerveja é uma bebida comum, para o dia-a-dia, por isso não é
travestida com toda aquela afetação de bebida sofisticada. É claro, também, que
há cervejas melhores e cervejas piores, e há muitos tipos de cervejas. Umas são
mais amargas, outras são mais aromáticas, e outras, ainda, levam especiarias em
suas receitas. Mas a diferença, como diz o título, está no "espírito da
cerveja".
Aristóteles já
havia classificado várias casas de uvas, e quais seriam melhores para a
vinificação. Em 500 a.C., os antigos Gregos já haviam desenvolvido tamanha
proficiência técnica na preparação dos vinhos (sempre considerados bebidas dos
deuses), que já tinham cestos especializados para a colheita de uvas, de forma
que fosse colhida apenas a quantidade exata de uvas para não pesar sobre as do
fundo, de forma que as bagas não se rompessem e começassem a fermentação sem
supervisão. O vinho foi consumido, desde então, nas heliogabálicas bacanais
romanas, nas festas da baixa Idade Média, e foi aí onde tudo começou. O vinho,
por ser o Sangue de Cristo, se tornou bebida de gente importante, e ganhou ares
de elegância, consumido em profusão pela tediosa aristocracia europeia da
Renascença e dos enfastiantes reis da França dos séculos XVI ao XIX. A cerveja,
por outro lado, era uma bebida artesanal, feita em geral para consumo próprio
entre as classes menos abastadas da mesma Europa. E é aí que está o “espírito
da cerveja”: é uma bebida para o lar, para as comemorações dos homens simples,
sem muita cultura. Não é necessário
dizer que a cerveja está com sabor de “pele de raposa” (embora este não seja um
aroma comum na bebida). Cerveja que não está boa, está “choca”.
Mas o que mais
chama a atenção para esta bebida desenvolvida por monges católicos é que ela,
muito embora seja uma bebida de homens comuns, não dispensa a boa e velha
ritualística do homem civilizado. Há uma enorme diversidade de copos, um para
cada tipo de cerveja, e um tipo de cerveja para cada homem, mulher e criança.
Para os de
paladares mais sofisticados, há aquelas com mais aromas, mais maltes e menos
cereais não malteados. Para os menos sofisticados, há aquelas bastante refrescantes e com menos
lúpulos, menos amargas. Para as mulheres, há as cervejas mais doces, como a
Malzbier e a Dunkel. E, para as crianças, há aquelas sem teor alcoólico como
as Ginger Ale e as Root Beers, que, muito embora não sejam exatamente cervejas,
são bebidas não industrializadas ótimas para os mais novos.
E foi
exatamente assim que esta bebida conquistou este que vos fala, muito aos
pouquinhos. Ela é uma bebida versátil, para a intimidade, com algo de
sofisticado, sem, no entanto, parecer empolada. Aqueles que quiserem
experimentar um pouco desta maravilhosa bebida não se arrependerão.
H.P. Cunha
H.P. Cunha