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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Der Biergeist





Alguns anos atrás, este que vos fala exclusivamente tomava vinhos. Nós nunca imaginamos que seria uma coisa boa para a saúde ou para o mundo a abstenção, salvo em algumas situações muitíssimo especiais. E, desfrutando este tão efêmero prazer da bebida, tomávamos apenas vinhos, nunca sem tomar extremo cuidado com a excelente qualidade do líquido.
Os anos foram se passando, e ficou claro que o vinho era, sobretudo, uma enorme afetação de sofisticação. Não que o vinho não seja uma bebida sofisticada, mas ele tem o poder quase sobrenatural de fazer quem quer que o beba parecer muito sofisticado, de forma que as afetações quase transexuais como a percepção de aromas de "pele de raposa" (distinguível apenas para caçadores ingleses, imagino...), madeiras de lei (alguém aqui já comeu carvalho? Imagino que a maioria nunca nemao menos viu carvalho...), e os genéricos "floral" e "frutado" (coisas que todos os "sommeliers" de botequim dizem quando não sabem como analisar a bebida) se tornaram quase insuportáveis para este humilde narrador.
Foi então que nós descobrimos o mundo encantado das cervejas, quase diametralmente oposto ao dos vinhos.
Por quê tão diferente? Não há "sommeliers" de cerveja?
É claro que há. As cervejas também apresentam aromas diversificados, alguns bastante exóticos. Mas a cerveja é uma bebida comum, para o dia-a-dia, por isso não é travestida com toda aquela afetação de bebida sofisticada. É claro, também, que há cervejas melhores e cervejas piores, e há muitos tipos de cervejas. Umas são mais amargas, outras são mais aromáticas, e outras, ainda, levam especiarias em suas receitas. Mas a diferença, como diz o título, está no "espírito da cerveja".
Aristóteles já havia classificado várias casas de uvas, e quais seriam melhores para a vinificação. Em 500 a.C., os antigos Gregos já haviam desenvolvido tamanha proficiência técnica na preparação dos vinhos (sempre considerados bebidas dos deuses), que já tinham cestos especializados para a colheita de uvas, de forma que fosse colhida apenas a quantidade exata de uvas para não pesar sobre as do fundo, de forma que as bagas não se rompessem e começassem a fermentação sem supervisão. O vinho foi consumido, desde então, nas heliogabálicas bacanais romanas, nas festas da baixa Idade Média, e foi aí onde tudo começou. O vinho, por ser o Sangue de Cristo, se tornou bebida de gente importante, e ganhou ares de elegância, consumido em profusão pela tediosa aristocracia europeia da Renascença e dos enfastiantes reis da França dos séculos XVI ao XIX. A cerveja, por outro lado, era uma bebida artesanal, feita em geral para consumo próprio entre as classes menos abastadas da mesma Europa. E é aí que está o “espírito da cerveja”: é uma bebida para o lar, para as comemorações dos homens simples, sem muita cultura.  Não é necessário dizer que a cerveja está com sabor de “pele de raposa” (embora este não seja um aroma comum na bebida). Cerveja que não está boa, está “choca”.
Mas o que mais chama a atenção para esta bebida desenvolvida por monges católicos é que ela, muito embora seja uma bebida de homens comuns, não dispensa a boa e velha ritualística do homem civilizado. Há uma enorme diversidade de copos, um para cada tipo de cerveja, e um tipo de cerveja para cada homem, mulher e criança.
Para os de paladares mais sofisticados, há aquelas com mais aromas, mais maltes e menos cereais não malteados. Para os menos sofisticados, há aquelas bastante refrescantes e com menos lúpulos, menos amargas. Para as mulheres, há as cervejas mais doces, como a Malzbier e a Dunkel. E, para as crianças, há aquelas sem teor alcoólico como as Ginger Ale e as Root Beers, que, muito embora não sejam exatamente cervejas, são bebidas não industrializadas ótimas para os mais novos.
E foi exatamente assim que esta bebida conquistou este que vos fala, muito aos pouquinhos. Ela é uma bebida versátil, para a intimidade, com algo de sofisticado, sem, no entanto, parecer empolada. Aqueles que quiserem experimentar um pouco desta maravilhosa bebida não se arrependerão.


 H.P. Cunha